Heinz F. Dressel
O julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre uma reinterpretação da Lei da Anistia de 1979 – a qual protege integralmente os respectivos representantes dos governos militares de serem julgados por execuções extrajudiciais, por torturas e por estupros -, este julgamento do STF que tomou lugar no dia 28 de abril 2010 em Brasília, infelizmente indulta e protege àqueles representantes dos governos militares que de maneira maciça cometeram crimes contra a humanidade.
Fazendo parte do primeiro grupo de pessoas que assinaram o „Apelo ao Supremo Tribunal Federal: Não anistie os torturadores”, enviado pelo Comitê Contra a Anistia dos Torturadores, observo com estranheza e repúdio a decisão do Supremo, que em última análise absolve os torturadores que andam por aí como qualquer policial ou militar honesto, que está cumprindo seu dever de zelar pela observação das leis e pela manutenção da ordem pública no Brasil.
Engana-se o Supremo, que iguala as vitimas do terror da ditadura com os torturadores. É um equívoco falar numa „bilateralidade” com referência aos dois lados, os torturadores e as vítimas do terror nos porões. Fato é, que o governo militar em 1979 promulgou uma Lei de Anistia que exonerava todos os acusados que cometeram „crimes políticos ou conexo com estes”. As violações dos direitos humanos cometidas por agentes de segurança ou outros integrantes dos governos militares foram interpretadas como „atos políticos”, coisa injustificável, porque num Estado de direito nunca pode-se classificar prisões e execuções extrajudiciais, torturas, estupros ou desaparecimento „a serviço da Pátria” como „crimes políticos ou conexo com estes” e os incluir na anistia. É coisa absurdíssima mesmo, que só se explica refletindo sobre os motivos de tal argumentação. Quem sabe, a razão do julgamento era a mesma que valeu na elaboração da lei de 1979: a „pacificação do País”.
Sem dúvida, desde os tempos da ditadura já passaram umas décadas, por isso vale lembrar os fatos básicos do assunto em disputa:
Foi Dom Hélder Câmara quem disse, a violência dos terroristas de esquerda era a de número 2, derivada da violência número 1, ou seja, a deposição de Jango. As hostilidades foram iniciadas pelos militares que passaram a prender e a torturar, comprovadamente já nos primeiros dias da „revolução salvadora”, como costumaram chamar o movimento dos generais que assaltaram o Poder.
Os que se envolveram na luta contra a ditadura, contra os torturadores e seus mandantes, estavam apenas reagindo à violência. Atiraram depois; os que foram absurdamente chamados de guerrilheiros e até de terroristas, agiram e reagiram em legítima defesa.
Nao foi como o ex-ministo dos generais (Educação e Justiça), Jarbas Passarinho, me quis fazer crer quando me escrevia numa carta datada em 16 de dezembro de 1996, ao responder uma carta tipo resenha da interessantíssima biografia dele, que lhe havia enviado no dia 13.11.1996:
“Não sei se o senhor conhece o livro: ‘A esquerda armada no Brasil’. premiado em Cuba e escrito a partir de depoimentos de guerrilheiros e terroristas de filiação comunista. Publicado em 1973, nele se contam as ações de assassinato denominadas „justiçamento”, como as do capitão americano Chandler, sob pretexto de ter lutado contra o povo vietnamita e ser „agente do CIA”; do empresário Boilensen; e do major alemão, aluno da Escola de Estado Maior do Exército brasileiro, „justiçado” por engano, tomado que foi pelo capitão boliviano Gary Prado, que prendera Che Guevara. Tudo é revelado com orgulho pelos depoentes!”
Quem iniciou a violência nos dias da páscoa em 1964 não foram os ditos “terroristas de filiação comunista”, como hoje em dia alegam os militares; muito pelo contrário, foram os adeptos da „revolução democrática”, como consta o caso do famoso Gregório Bezerra, que no dia 1º de abril encontrava-se no caminho do sertão pernambucano rumo ao Recife. Ao ter chegado na usina Pedrosa em Ribeirão, ele foi preso por um capitão da PM. Na viagem ao Recife encontraram um destacamento do Exército acompanhado por um bando de pistoleiros, enviados pelo proprietário do latifúndio Estreliana a fim de matar o Gregório. Ocorreu uma disputa acerca do procedimento mais razoável: matar o preso na hora mesmo ou mais tarde? Resolveu-se levá-lo a Ribeirão. Chegado lá, amarraram o homem e o jogaram num veículo do Exército. No Recife o entregaram às mãos do general Justino Alves Bastos, comandante do IV. Exército. De lá o levaram ao quartel da Companhia de Motomecanização. Imediatamente o comandante, tenente-coronel Darcy Villocq Viana, junto com uma turma de soldados, o agrediu, batendo nele fortemente com seus fuzis, não poupando ponta pés. Acontece que entre os presos que juntamente com Gregório deram entrada havia também um médico, ao qual deram ordem de limpar o homem do sangue que correu fortemente. Este médico utilizou sua própria camisa para tratar os ferimentos do Gregório. Enquanto o médico se ocupava do Gregório Bezerra, por incrível que pareça, o tenente-coronel tentou induzir uma barra de ferro no ânus dum preso seminu. Isso aconteceu no primeiro dia do mês de abril e nenhum dos presos que passaram tais crueldades foi um „terrorista”, e nem se fala num „torturador” – não faz mais o mínimo sentido falar de „bilateralidade”, como o está fazendo o Supremo! A tortura tornou-se instrumento exclusivo das forças de segurança (que contradição!) da ditadura. Vejam a tragédia no nordeste: „Nos porões dos quartéis dominados pelos criminosos, mas também nas principais ruas do Recife, com prisioneiros sendo „passeados à vista de todos, e relembre-se, amarrados pelo pescoço”, diz Helio Fernandes. Também a „via crucis” do Gregório o levou pelas ruas da cidade. Num cenário macabro, envolto de uma multidão estarrecida na „Praça Burle Marx”, como o lugar se chama hoje, em frente da igreja do bairro de Casa Forte, perante um número de instalações da paróquia, inclusive um colégio de freiras, o comandante do destacamento militar gritou: „Venham todos e olham como se enforca o comunista Gregório Bezerra!” A madre superiora do colégio assistiu com horror o cenário bárbaro lá embaixo, quando suas alunas, cheias de medo, observaram tudo pelas janelas, pegou o telefone e avisou o bispo que imediatamente alarmou a hierarquia militar. „No último momento apareceu o coronel Ibiapina e parou as bestialidades que horrorizaram todos os moradores”, contou Paulo Cavalcanti. Sargento Gregório foi condenado para muitos anos de prisão, mas antes, junto com outros 69 presos políticos pelo governo brasileiro, foi trocado contra o embaixador da Suíça, Giovanni Enrico Bucher, sequestrado por guerrilhas urbanas, e levado ao Chile.
O terror no nordeste, produzido por elementos pertencentes ao IV. Exército chegou a tamanha extensão que o presidente Castelo Branco teve que enviar o general Ernesto Geisel, chefe da casa militar, a Pernambuco para investigar a situação devido às reclamações de todos os lados. O relatório de Geisel existe, mas faz parte dos documentos que estão sendo tratados como segredo do Estado para o cidadão brasileiro não olhar.
Dói falar sobre a tortura „ou conexo com esta”.
Notei isso, quando na ocasião de uma visita a sua casa, no dia 30.8.2007, conversei com o ex-ministro dos generais, Jarbas Passarinho. Referindo-me à biografia dele, chamei atenção do fato de que, quando há 35 anos o visitei no ministério de educação na capital, não havia deixado de fazer uma observação a respeito das coisas ocorridos „nos porões” das Forças Armadas. Ele repetiu a resposta que ele havia-me dado naquela ocasião: „Estou certo de que os senhores realmente ouviram muito mais sobre o terror clandestino nos porões da polícia ou nos recintos de certos quartéis do que nós ministros civis dos governos dos generais.”
Lembrei que o ministro Passarinho naquele vez, em 1972, havia sido o único representante do Governo militar que deixou passar a palavra „tortura” por seus lábios apesar de que ele diminuiu a admissão da existência da tortura pelo termo „não sistemática”…
Após esta reminiscência, Jarbas falou por mais tempo sobre o tópico da tortura, destacando que ele, também como membro do Exército em função de oficial de reserva, rejeitava a tortura. Aí ele mencionava um caso de tortura que havia provocado sua imediata reação bastante enérgica. Nesse contexto ele mencionou o general Frota, que sem dúvida se inclinava à direita, mas que era rigorosamente contra a tortura. Jarbas contou com orgulho que durante seu mandato de governador do Estado de Pará não havia sido necessário prender nenhuma pessoa por cause do uso da tortura.
Mas …, ao disputir sobre certos métodos da tortura, através dos quais, pelas circunstâncias dentro de um prazo muito curto, poder-se-ia receber informações essenciais de natureza militar – como havia sido com os franceses na Argélia – nestas condições o sofrimento de uma só pessoa poderia ser aceitável para salvar a vida de muitas outras pessoas. Poderia dizer-se que esse sofrimento seja apenas um sofrimento menos grave, como no dentista, que tira um dente sem anestesia alguma; dói na hora, mas a gente esquece logo … Ouvindo isso, me lembrei do lema do sumo sacerdote, Caifas, presidente dos sacerdotes naquele ano da execução do rebelde Jesus: „É melhor que morra apenas um homem pelo povo, do que deixar que o país todo seja destruído” (João 11,49).
Mas, não eram dentistas os torturadores, muito pelo contrário, eram monstros que se tornaram poderosos ao maltratar os outros. Suas vítimas eram idealistas, como Jarbas Passarinho admitiu caracterizando-os: „idealistas paradoxalmente materialistas”. Foram severamente torturados, mas nunca torturaram ninguém. Convivi durante anos com esta „diáspora” brasileira na Alemanha e na Franca, jovens formidáveis.
Entre eles Luís Travassos, líder estudantil em São Paulo, como José Serra. Nos anos 1967/68 Luís liderou grandes passeatas, gritando palavras de ordem como „O povo unido jamais será vencido” – a única arma utilizada pelos estudantes rebeldes. Luis foi co-organizador do famoso Congresso da UNE em Ibiúna, onde se reuniram mais de 1.000 estudantes, clandestinamente, como pensaram, mas o SNI estava bem informado. No último dia de seu mandato como presidente da UNE, em 12 de outubro de 1968, Travassos foi preso com 920 estudantes. O rapaz ficou detido durante um ano inteiro. Quais as bestialidades que sofreu esta juventude idealista contou o colega de Luís na direção da UNE e também na prisão, Jean–Marc von der Weid, numa entrevista ao epd–Nachrichtenspiegel Nº 12 do dia 25.3.71: desde o primeiro dia foram batidos e sistematicamente torturados, houve repetidamente execuções fingidas, os presos foram pendurados pelas pernas e torturados com choques elétricos, e praticou-se o „water boarding” ou quase-afogar das vitimas horrorizadas. Tirar um dente sem anestesia?
Travassos deixou este inferno criado pelos „órgãos de segurança” depois de um ano, acompanhado de 14 presos políticos em troca do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, sequestrado por guerrilhas urbanas. Um avião da Força Aérea os levou ao México, „banidos por tempo de vida.”
Seu caminho o levou via México, Cuba e Chile à Alemanha, onde chegou com sua esposa Marijane Lisboa e onde a Obre Ecumênica de Estudos em Bochum os acolheu.
O histórico da Marijane foi muito cruel também. Junto com a juventude estudantil carioca ela agitou nos primeiros anos depois do golpe, assistindo a passeata em 1968 em que mataram o jovem estudante Edson Luís. Por ordem do serviço de inteligência da Marinha Marijane foi presa no CENIMAR – Centro de Informações da Marinha na Ilha das Flores, onde a tortura era tão brutal que o coração da moça começou a falhar. Demorou um ano e meio até que a moça teve de se apresentar perante um tribunal militar. Apesar de absolvida, ela foi detida de novo em frente à porta do tribunal. Posta em liberdade depois de 20 dias, ficou livre durante 5 dias e de novo entrou no cárcere. Depois de 30 dias foi posta em liberdade. Um advogado da família a buscou, mas no caminho o carro dele foi parado, pegaram a Marijane, e a levaram encapuzada ao centro de tortura do Exército na Tijuca. A família conseguiu que ela fosse posta em liberdade depois de três semanas. Aí, no caminho a casa, Marijane resolveu pedir asilo na embaixada chilena, de onde se foi para Santiago. Que odisséia!
Como é que é possível falar de „bilateralidade” em vista destas pessoas que sofreram todo tipo de besteira – inclusive estupro – e que nunca na vida nem tocaram em outra pessoa; como o STF pode colocar estas pessoas do lado dos torturadores?
Como os ministros do Supremo podem chamar de bilateral a anistia dada a torturadores e a brasileiros que praticaram o “crime” de resistir a esses torturadores? – perguntou também Helio Fernandes, grande repórter da Tribuna da Imprensa, praticamente liquidada pela ditadura.
Como é possível comparar monstros como aqueles que despedaçaram o preso Bacuri Eduardo Leite, militante da guerrilha urbana, primeiro cortando-lhe uma orelha, depois tirando-lhe os olhos e arrancando-lhe um braço, destruindo seu corpo, membro por membro – como é possível comparar monstros, que fizeram coisa desta, com as vitimas que não torturaram ninguém em toda sua vida? Monstros que até esquartejaram os cadáveres de suas vitimas como se fossem bois no matadouro, métodos que se usaram no Centro de Investigação em Petrópolis-RJ.
Considerando tudo isso, o julgamento do Supremo Tribunal Federal parece ser irracional. Tortura não pode ser considerada função legítima do Estado, não é possível declarar a tortura parte dos deveres dum funcionário público, Tortura é crime contra a dignidade humana e não deve ser anistiada. Se o torturador agiu em nome do Estado, deve ser responsabilizado até o governo, como neste meio tempo acontece no Chile, na Argentina e no Uruguai.
Lamentamos que o Brasil rejeite a confrontação com um período escuro de sua história.